sábado, 28 de março de 2015

A tragédia com o avião da Germanwings mostra que, quando decolamos, entregamos nossas vidas a homens e mulheres e à crueza de sua condição humana

FLÁVIA TAVARES
27/03/2015 21h55 - Atualizado em 27/03/2015 21h58

Ele não devia estar ali. Mas queria estar ali. Despedaçou o atestado médico que o dispensava de sentar no cockpit naquela manhã. Encobriu sua condição, sua falta de condição. Acomodou-se na cabine, na poltrona à direita e, às dez horas e um minuto, com precisão aeronáutica, cumpriu seu dever. Assistiu ao piloto e botou o avião a voar. Por vinte minutos, ouviu o colega falar amenidades, replicando com cortesia e brevidade. O piloto, então, deixou a cabine. Ele foi instantaneamente promovido. Naquele instante, Andreas Lubitzassumia o controle. Aos 27 anos, quiçá pela primeira vez. Passou a comandar, solitário, as setenta toneladas de aço que carregavam mais cento e quarenta e nove vidas, além da sua. Trancou-se no cockpit. Ignorou os chamados desesperados do piloto do lado de fora. O comandante agora era ele. Exatamente trinta minutos depois da decolagem, Lubitz deu início a uma descida firme. Inabalável. Tão antinatural quanto o que parece ter sido a escolha de Lubitz, de tirar a própria vida, foi o choque entre o corpo metálico do Airbus com a superfície rochosa e gelada dos Alpes franceses. Foi a morte dos outros 149 ocupantes da aeronave, que, aos gritos, só se deram conta do fim que lhes foi imposto nos últimos segundos. Antinatural é a opção do suicídio. É jogar um avião no chão. É dar cabo de tantas vidas por querer desesperadamente uma saída para a sua.
 
Homenagem às vítimas do acidente com o avião da Germanwings (Foto: AP Photo/Christophe Ena)
Quando entramos num avião, embarcamos no imponderável. Com base na confiança em uma tecnologia que não compreendemos muito bem, acolhemos a ideia de voar e, para isso, superamos medos. Eventualmente, somos confrontados com os perigos de estar a milhares de metros de altura – terroristas, transponders, raios. Não tomamos conhecimento, porém, do imponderável da mente e da miséria humana. Antes da máquina, quem nos guia pelos céus são homens e mulheres. "O ser humano é muito perigoso", diz o psicanalista Jorge Forbes. "A previsibilidade de nossas ações é quase nula. E absolutamente qualquer pessoa pode cometer atrocidades." Imaginar que Lubitz tenha intencionalmente voado de encontro à montanha ainda é um exercício de especulação, mas, a cada minuto, novas provas apontam para esse desfecho. O horror de sua respiração inalterada, registrada pela caixa-preta, em contraste com os brados dos condenados que ele levava consigo, nos paralisa. Sua ação subversiva leva a perguntas que não deveriam ter de ser feitas: como alguém escolhe se matar carregando consigo dezenas de almas? É o mesmo tipo de desconforto que jovens atiradores em colégios provocam. Ou pais descontrolados, que massacram a própria família e, em seguida, a si mesmos.  "Não é incomum que a reação do suicida seja a de 'vou fazer você sofrer também, sou eu que te mato, não vou ficar à mercê'. É uma satisfação patológica, um poder", explica Forbes.
 
Andreas Lubitz (Foto: AP Photo/Michael Mueller)
Não se sabe se foi esse o sentimento que povoou Lubitz naqueles dez minutos descendentes. O filósofo Julio Cabrera, professor de bioética na Universidade de Brasília e autor dos três verbetes sobre "suicídio" no Diccionario Latino-americano de Bioética, preocupa-se com a estigmatização dos suicidas a partir do episódio com o Germanwings. Ele diz que, se Lubitz propositadamente atirou o avião nas montanhas, cometeu homicídio, antes de tudo. "Matar alguém nunca é uma escolha ética. O homicídio não se justifica moralmente, ainda que fruto de defesa pessoal ou de perturbação mental. A escolha pelo suicídio, quando não afeta diretamente mais ninguém, por outro lado, pode ser uma escolha pela dignidade, partindo da ideia de que viver em certas condições é pior do que morrer", diz Cabrera, autor de Crítica da moral afirmativa: uma reflexão sobre nascimento, morte e valor da vida e A ética e suas negações.
Lubitz pode ter escolhido morrer e matar. E a mera possibilidade de se fazer uma escolha tão extrema quanto essa assusta. A humanidade assistiu impassível a alguns atos coletivos abomináveis, como o nazismo e a escravidão, mas se desestabiliza com atos isolados de violência. "É uma negação ao fato de que o autor da atrocidade é parecido conosco. Por isso, nos recusamos a ter empatia. Porque isso seria admitir que nós também estamos sujeitos a cometer algo parecido", diz Forbes. Admitir a condição humana é o remédio amargo que resistimos a tomar, diz Julio Cabrera. "Somos capazes de atos terríveis, que são injustificáveis, mas compreensíveis quando se aceita a condição humana em toda sua crueza, seu lado mais obscuro e sinistro. Criamos nossos filhos com uma ideia fantasiosa, com cores que as decepcionam", afirma Cabrera. "A nossa existência se baseia no fingimento e na ocultação, no pudor em reconhecer nossa miséria humana. Se aceitarmos a crueza da nossa condição, estaremos mais preparados para compreender eventos como esse." Lubitz escondeu sua falta de condição. Não devia estar ali. Mas queria estar ali.

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