quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Roberto Troncon: "A Polícia Federal deve ter autonomia"

O chefe da PF em São Paulo defende a independência em relação ao Poder Executivo e a transformação do órgão numa versão do FBI, concentrada em investigação criminal

GUILHERME EVELIN E PEDRO MARCONDES DE MOURA
09/10/2014 14h21
SEM TRAVAS  Troncon, na PF em São Paulo. “Se não falarmos, vêm os especialistas de segurança pública de plantão” (Foto: Filipe Redondo/ÉPOCA)Há duas décadas na Polícia Federal, o superintendente da PF em São Paulo,Roberto Troncon, assistiu à corporação sair de uma situação de colapso, logo após o fim da ditadura, para uma posição de força, conquistada nos consecutivos governos democráticos. Segundo ele, “não há paternidade nem doPSDB nem do PT” no reaparelhamento, que permitiu as grandes operações de combate aos desvios de dinheiro público – como a Lava Jato, sobre a corrupção na Petrobras. Troncon defende, agora, uma nova virada para fortalecer ainda mais a PF. Para ter sucesso no combate à corrupção, diz ele, o órgão deve ganhar autonomia em relação à Presidência da República.
ÉPOCA –  PT e PSDB reivindicam para si o mérito por reaparelhar a Polícia Federal. Quem tem razão?
Roberto Troncon –
 Com o fim do regime militar, houve um estigma em relação aos órgãos de segurança pública. A Polícia Federal definhou. Só no governo Itamar Franco, ela  foi autorizada a recompor o efetivo para atender à Constituição. Foi quando ingressei. A PF estava à beira do colapso, tinha 4.250 policiais. Os governos que sucederam, FHC, Lula e Dilma, seguiram no reaparelhamento. Por isso, não há paternidade nem do PSDB nem do PT. Nenhum deles pode dizer, pura e simplesmente, que transformou a Polícia Federal. É fato que começou a haver os concursos, os investimentos e a readequação de estrutura tecnológica. Num período curto, iniciamos um cenário de reestruturação. A PF passou a ser mais conhecida, pois dirigiu sua atuação não apenas para o tráfico de drogas, contrabando e descaminho, mas também para os crimes envolvendo corrupção de agentes públicos.
ÉPOCA – A visibilidade fez a instituição virar vidraça também.
Troncon – 
Ser vidraça é do jogo. Quem quer fazer a diferença tem de correr riscos. Aconteceu que ganhamos mais visibilidade e atribuições. Hoje, temos dois grandes blocos de funções na PF. Um é típico do Poder Executivo, as atividades de controle e de prevenção. São os controles de armas de fogo, produtos químicos, segurança privada, registro de estrangeiros e emissão de passaporte. Ainda há o controle migratório e a segurança de autoridades estrangeiras e ministros. Só não fazemos a segurança do presidente e do vice-presidente. E há o outro grande rol de responsabilidades, como a investigação de crimes contra a União, o tráfico de drogas e o descaminho.
ÉPOCA – Há muitas reclamações de pouco efetivo policial para cumprir essas atribuições. Como resolver?
Troncon – 
Hoje, a Polícia Federal tem 105 mil inquéritos e 12 mil policiais. Mesmo com mais gente, o efetivo seria insuficiente, pois, no rol de atribuições, propositalmente, omiti ainda mais uma: o papel de exercer funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteira. A PF deve garantir a segurança em portos e aeroportos, cumprir a função de guarda costeira e patrulhar a fronteira terrestre. Não dá para fazer um negócio desses. É impossível.
ÉPOCA – Qual a solução?
Troncon –
 A PF deveria se tornar um órgão exclusivamente de investigação criminal, como o FBI, nos Estados Unidos. É preciso tirar da PF todas as atribuições de polícia preventiva. Agregaríamos à investigação 6 mil federais, metade do nosso efetivo.
ÉPOCA – Quem assumiria as outras funções?
Troncon –
 Elas poderiam ser transferidas a órgãos existentes, novos ou até para o Ministério da Justiça. A segurança de autoridades pode ser feita pelo Gabinete de Segurança Institucional. A emissão de passaporte e o controle de estrangeiros, assim como o controle de armas e de produtos químicos, poderiam ficar a cargo do Ministério. O controle de fronteiras pode ficar a cargo da Polícia Rodoviária Federal, que faz o patrulhamento ostensivo de rodovias federais em territórios de Estados. Essa polícia está pronta e tem 12 mil homens, como a PF.
ÉPOCA – O senhor tem defendido a elevação da PF a agência. Como isso se daria?
Troncon –
 Defendo duas coisas. A primeira é que a PF deve se restringir às atividades de investigação criminal. A segunda é que essa polícia de investigação deve ter autonomia administrativa, para se auto-organizar, autonomia funcional, para que não tenha subordinação a ministérios ou ao presidente da República, e autonomia orçamentária. Isso garantiria as condições ideais para que se atacassem os grandes males da segurança pública, incluindo desvios de dinheiro público. O termo agência é uma questão mais semântica. Tanto faz o nome que você dará.
"As propostas de segurança pública, na campanha eleitoral, são muito superficiais"
ÉPOCA –   O vínculo com o Ministério da Justiça inibe a ação da PF?
Troncon –
 Não. Há uma independência cultural e dogmática que os policiais federais adquiriram. Hoje, a PF consolidou uma cultura de que a lei vale para todos. Não vejo a  menor possibilidade de que um dirigente da PF que deseje proteger ou perseguir alguém em investigações tenha sucesso.
ÉPOCA – Quais as consequências da falta de autonomia?
Troncon – 
A independência de agir existe na prática. O que não existe é a capacidade de se autogerir.  No momento em que a população clama pela responsabilização de elevados agentes públicos que se metem com desvio de recursos públicos, temos um órgão, como o nosso, enxuto e sujeito a uma série de contingências de orçamento e investimento. Aí há um problema. O Ministério Público, que é independente, acusa diante de fatos que lhe são apresentados. A Justiça também é independente e decide diante do que está no processo. Quem vai atrás, quem tem capacidade de investigar, de colher e organizar as provas? É a polícia de investigação. Se essa atividade não tiver as mesmas condições e não for bem-feita, em casos complexos, como o mensalão ou o petrolão, a responsabilidade criminal de quem agiu contra a lei, especialmente de grupos poderosos, fica prejudicada.
ÉPOCA – Como seria a nomeação do diretor-geral da PF?
Troncon –
 Para dar estabilidade, o diretor-geral deveria ser indicado pelo presidente e sabatinado pelo Senado, para um mandato improrrogável de quatro anos, intercalado entre dois mandatos presidenciais. O indicado poderia ser destituído a qualquer tempo, desde que praticada alguma falta ou crime. Mas a destituição teria de ser feita pelo presidente e aprovada no Senado. Se você olhar os Estados Unidos, eles têm um diretor indicado por dez anos. É muito. Numa função dessas, ninguém dura tanto com sanidade mental.
ÉPOCA –  A autonomia não daria poder demais à PF? Na Operação Satiagraha, ela foi acusada de ilegalidades.
Troncon –
 Isso faz seis anos. Não tivemos mais nenhum caso. O então delegado(Protógenes Queiroz) descumpriu regras internas e responde a processo administrativo disciplinar. Ele hoje exerce um mandato (de deputado federal) e pode ser demitido sem direitos. Em outros órgãos, a punição é a aposentadoria compulsória.
ÉPOCA – Quem faria o controle do órgão?
Troncon – 
Nosso controle de atividade policial é melhor que em países da Europa Ocidental e da América do Norte. Nesses países, você só tem apenas um controle. No Brasil há mais controles, frutos de um regime de exceção em que a polícia teve muito poder e cometeu abusos. Hoje, a polícia não pode tomar quase nenhuma medida invasiva na vida das pessoas sem autorização judicial. O MP participa de todos os inquéritos judiciais e pode requisitar diligências, acompanhá-las, ver a investigação. Além disso, poderia ser criado também um conselho nacional da polícia de investigação. Concordo que poder sem controle gera risco de abuso.
ÉPOCA – Existe um debate com o governo sobre essa proposta?
Troncon – 
O diálogo deve existir, mas não tem havido um debate profundo para repensar o modelo da segurança pública. Estamos na reta final de campanha, e as propostas, de um modo geral, são muito superficiais. Promete-se fazer muitas coisas, mas não se aponta de onde vêm os recursos. Nós, policiais federais, também somos muito enquadrados, com esse negócio de nunca falar no futuro da organização. Já perdi as travas. Se não falarmos, vêm os especialistas de segurança pública de plantão que nunca trabalharam na polícia.
ÉPOCA – Nas últimas semanas, a PF foi acusada pelos presidentes do Senado e da Câmara de perseguir candidatos a governador do PMDB. Como o senhor vê as acusações?
Troncon – 
A PF age, nas eleições, por demanda do MP ou da Justiça, para apurar denúncias de malfeitos. Se sou candidato e sofro uma fiscalização e nada é encontrado comigo, consideraria isso um atestado de boa conduta. Compreendo que alguns candidatos tentem sensibilizar a opinião pública posando como vítimas. Mas, pelo que sei, foi um ato normal.

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