domingo, 20 de julho de 2014

O desastre aéreo de Putin

A queda do Boeing da Malaysia Airlines matou 298 pessoas.
A provável causa da queda – um míssil – mostra que a disputa territorial
na Ucrânia saiu do controle da Rússia

MARCELO MOURA, RODRIGO TURRER, VINICIUS GORCZESKI, ALINE IMERCIO, LEANDRO LOYOLA E MARCOS CORONATO
Derrubar um avião de passageiros, como o Boeing 777 do voo MH-17 da Malaysia Airlines, atingido por um míssil na última quinta- feira, dia 17, é uma evidente barbárie contra as vítimas e seus familiares. Mas não apenas isso. Politicamente, é um tiro de canhão no próprio pé. Matar centenas de inocentes indefesos, de diversos países, acaba por unir o mundo diante de uma posição – contra o responsável pela violência, tenha ela sido intencional ou não. Em todos os episódios anteriores de ataque contra aviões civis, o culpado saiu do episódio pior do que entrou.  Quando o líder da al-Qaeda Osama bin Laden mandou jogar duas aeronaves contra as Torres Gêmeas, em 11 de setembro de 2001, condenou à morte a sua causa e a si próprio.
O mundo provavelmente levará meses para saber em detalhes o que ocorreu ao Boeing que decolou às 12h15 (7h15, no horário de Brasília) da Holanda e caiu duas horas depois na Ucrânia, matando instantaneamente 298 pessoas. Ainda que o governo da Rússia tenha descartado qualquer responsabilidade pelo disparo do míssil que causou a tragédia (identificado pelos serviços de inteligência americanos como de fabricação russa),  os olhos do mundo recaem, desde já, sobre o presidente russo, Vladimir Putin.
Putin é responsável por fomentar, com palavras, dinheiro e armas, os rebeldes separatistas que assumiram o controle do leste da Ucrânia, na fronteira com a Rússia, onde caiu o avião, e lutam pela independência. “Separatistas não têm como derrubar aviões militares sem equipamento sofisticado – e isso está vindo da Rússia. Se Putin decidir que não permitirá o fluxo de armamento pesado e homens para a Ucrânia, o fluxo cessará”, disse o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama. “Ele é quem mais teria controle sobre a situação – mas, até agora, não exerceu esse controle.”
A queda do avião, a dor dos parentes e os crescentes custos do conflito na Ucrânia – políticos, econômicos e, agora, até para a segurança da aviação internacional – contribuem para transformar em assunto global um conflito que começou internamente, se expandiu regionalmente e agora traga o mundo. Na sexta-feira, o Conselho de Segurança da ONU fez uma reunião emergencial para decidir sobre uma investigação internacional a respeito da queda do avião da Malaysia Airlines e para tentar controlar a troca de acusações entre russos e ucranianos. Cobrado a tomar medidas, Putin propôs um cessar-fogo entre os insurgentes e o governo ucraniano para amainar a crise. 
>> Fotos: Destroços do avião da Malaysia Airlines no leste da Ucrânia

TRAGÉDIA Partes da  fuselagem do Boeing 777  da Malaysia Airlines que  caiu na Ucrânia e matou 298 pessoas  (Foto: Maxim Zmeyev/Reuters)
Há meses a diplomacia mundial se questiona se a Rússia acelerou o fornecimento de equipamento militar sofisticado aos rebeldes. Se ficar comprovada a culpa dos separatistas pró-Rússia na Ucrânia e algum envolvimento do governo Putin na queda do avião, as autoridades dos países ocidentais, por causa da comoção provocada pela tragédia, serão pressionadas a reagir à altura e a ir além das sanções econômicas que vêm sendo progressivamente adotadas pelos Estados Unidos e pela União Europeia. Como o Ocidente poderá punir os rebeldes? O que pode ser feito para punir os russos por fornecer material bélico aos separatistas? Enviar tropas da Otan para a Ucrânia é impensável, por ora. A Rússia é dona do segundo Exército mais poderoso do planeta e tem poder de veto no Conselho de Segurança da ONU. Nenhuma medida legal contra a Rússia pode ser tomada sem a aprovação do Conselho. “A crise entre Ucrânia e Rússia saiu de controle até mesmo para Putin”, afirma o ucraniano Alexander Motyl, professor de ciência política na Universidade Rutgers, nos Estados Unidos. “A única alternativa seria impor mais sanções econômicas à Rússia, mas isso não tem surtido o efeito esperado.”
Nesse complicado cenário geopolítico, o Brasil tenta se manter institucionalmente tão distante do conflito quanto está da Rússia e da Ucrânia na geografia. Desde o início da crise, o Itamaraty divulgou apenas uma nota em fevereiro. Documentos reservados do Itamaraty, obtidos e divulgados por hackers, mostram que a Rússia pediu apoio ao Brasil, durante uma das reuniões preparatórias da cúpula dos Brics, em março. “O chanceler (russo, Sergei) Lavrov discorreu sobre a intervenção russa na Crimeia (região da Ucrânia de ampla maioria russa)”, diz o texto enviado pelo embaixador do Brasil em Haia (Holanda), Piragibe Tarragô. “Lavrov pediu aos membros dos Brics que não apoiassem projeto de resolução apresentado pela Ucrânia na Assembleia-Geral.”
A presidente Dilma Rousseff decidiu adotar a neutralidade para não melindrar um importante parceiro comercial e evitar que Putin cancelasse a vinda à reunião dos Brics, na semana passada, em Fortaleza e Brasília. Na reunião, Dilma, na frente de Putin, falou de público sobre a crise ucraniana de forma suave. “Discutimos a multiplicação de conflitos regionais, especialmente no Oriente Médio. Tratamos os enfrentamentos na Síria, no Iraque e nas relações entre Israel e Palestina. Discutimos igualmente a situação na Ucrânia”, disse. “Lamentamos a falta de avanços concretos na maioria dessas situações e coincidimos que, em todas elas, soluções de longo prazo passam necessariamente pela via do diálogo, que depende do engajamento e do empenho de todas as partes envolvidas.” Por causa dos problemas do Brasil, como a economia em dificuldades, o governo Dilma não tem força política para fazer mais do que isso no plano externo.

DOR Homenagem  às vítimas diante da embaixada da Holanda  na Ucrânia.  Das 298 pessoas  a bordo, 189 eram holandesas (Foto: Sergei Supinsky/Afp)
Rússia e Ucrânia começaram suas manobras para se esquivar das consequências diplomáticas da tragédia quando os destroços do avião ainda pegavam fogo no chão. Do lado da Rússia, o Kremlin afirma que Putin telefonou ao presidente Obama, imediatamente após saber do desastre. Putin disse desconhecer que os separatistas ucranianos pró- Rússia tivessem lançadores de mísseis Buk, capazes de derrubar o avião. O governo da Ucrânia afirma ter provas de envolvimento dos separatistas no ataque. Elas são baseadas em interceptações de conversas telefônicas, em que os insurgentes da autoproclamada República Popular de Donetsk (maior cidade do Leste da Ucrânia, com população predominantemente de etnia russa) falam sobre a derrubada do avião. Segundo o jornal britânico The Guardian, Igor Gir­kin Strelkov, líder separatista pró-Rússia, também publicou na rede social VK (a mais popular da Rússia) um texto em que comemora a queda de um avião, acompanhado de imagens da coluna de fumaça deixada pela queda do Boeing.
Antes da derrubada do Boeing da Malaysia Airlines, o governo de Kiev já acusara jatos russos de derrubar um caça SU-25 ucraniano. Também divulgara que um míssil, “provavelmente disparado do território russo”, derrubara um cargueiro da Ucrânia e matara dois tripulantes. Embora o governo dos EUA diga ter informações de que o míssil que causou a tragédia foi disparado de uma região da Ucrânia controlada pelos separatistas (desde junho, há rumores de que eles se apossaram de um lançador de mísseis, antes pertencente às Forças Armadas ucranianas), é preciso investigar tais alegações com cuidado, porque há também uma guerra de informação em curso. Após a derrubada do avião, teorias conspiratórias que parecem tiradas de um filme de espionagem do período da Guerra Fria começaram a pipocar. Uma das versões noticiadas pela Tass, a agência de notícias estatal russa, sugeriu que o verdadeiro alvo do míssil era Putin. Outra teoria divulgada pelos russos diz que a Ucrânia disparou o míssil para incriminar os separatistas. O autor do atentado, seja quem for, muito provavelmente, cometeu um erro grosseiro de alvo. “Um avião de passageiros pode ser confundido no radar com um avião de transporte militar do mesmo tamanho”, afirma Igor Sutyagin, especialista em armamentos do Royal United Services Institute, de Londres.
Derrubar um avião de grande porte, em pleno voo, é um empreendimento que exige alto grau de sofisticação militar. O Boeing 777 seguia normalmente sua rota entre Amsterdã, na Holanda, e Kuala Lumpur, na Malásia. Voava a 33.000 pés (cerca de 10.000 metros) de altitude, perto do limite autorizado pelo governo da Ucrânia para o tráfego aéreo nos céus do país, quando foi abatido. Mísseis capazes de atingir um alvo móvel a tal distância são guiados por radar e transportados em veículos parecidos com pequenos tanques – as “baterias”. Sofisticado e de difícil manejo, o sistema antiaéreo Buk, popular na antiga União Soviética, dificilmente poderia ser obtido e operado por guerrilheiros sem o apoio de uma potência militar.
Qualquer que seja o culpado pelo disparo do míssil, a Rússia já tem responsabilidade por perder o controle da segurança aérea numa área de sua influência. Outros incidentes ocorreram nos últimos meses, como a derrubada, em junho, de um avião cargueiro ucraniano com 49 pessoas a bordo. Todos morreram. “Costumamos ver o céu como um espaço livre, mas não é verdade”, diz David Woods, consultor da investigação da queda do ônibus espacial Columbia e do voo Air France 447. “Os órgãos internacionais de aviação terão de reavaliar o risco de voar no espaço aéreo da Ucrânia e as melhores formas de evitá-lo.” Em 14 de junho, a autoridade de aviação do Reino Unido orientou as empresas aéreas a contornar a Ucrânia. Horas após a queda do avião da Malaysia Airlines, o governo da Ucrânia fechou seu espaço aéreo. Foi quase uma formalidade, uma vez que, voluntariamente, diversas empresas já haviam anunciado o desvio de suas rotas da região. O conflito na Ucrânia já produz consequências trágicas a 10 quilômetros de altitude. Se as lideranças mundiais não souberem agir para contê- lo, ele continuará a se alastrar.



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