quinta-feira, 24 de julho de 2014

A ilegalidade na negativa à compra de arma de fogo

Impossibilidade de juízo de discricionariedade da autoridade policial federal

*Fabricio Rebelo
Via Blog da Renata
Multiplicam-se pelo Brasil casos de indeferimento de autorização de compra de arma de fogo por cidadãos civis. À exceção de uma ou outra eventual insuficiência documental, a quase totalidade dos casos tem a mesma justificativa: não ter a autoridade policial que representa o SINARM se convencido da necessidade da arma, de forma a excepcionar a diretriz de governo firmada no desarmamento. O despacho de indeferimento, não raro, é padronizado neste sentido, independentemente da situação concreta do requerente.
Ocorre que, na análise de pedidos de autorização para a aquisição de arma de fogo, não há, sob a estrita ótica legal, qualquer espaço para o exercício de juízo de discricionariedade pela autoridade policial. À luz da Lei nº 10.826/03, popularmente conhecida como “estatuto do desarmamento”, a autorização de compra é ato vinculado, exigindo apenas a satisfação de requisitos objetivos.
A matéria tem regulamentação específica no artigo 4° da referida Lei, de cujos termos se infere:
Art. 4º Para adquirir arma de fogo de uso permitido o interessado deverá, além de declarar a efetiva necessidade, atender aos seguintes requisitos:
I - comprovação de idoneidade, com a apresentação de certidões negativas de antecedentes criminais fornecidas pela Justiça Federal, Estadual, Militar e Eleitoral e de não estar respondendo a inquérito policial ou a processo criminal, que poderão ser fornecidas por meios eletrônicos;
II – apresentação de documento comprobatório de ocupação lícita e de residência certa;
III – comprovação de capacidade técnica e de aptidão psicológica para o manuseio de arma de fogo, atestadas na forma disposta no regulamento desta Lei.
§ 1° O Sinarm expedirá autorização de compra de arma de fogo após atendidos os requisitos anteriormente estabelecidos, em nome do requerente e para a arma indicada, sendo intransferível esta autorização. 
 De acordo com o texto legal, não desafia maiores digressões a objetividade dos requisitos listados nos incisos I a III, porquanto se mostrem, inquestionavelmente, de comprovação documental, seja por certidões negativas (I), contracheque, declaração de imposto de renda ou equivalente (II), ou através de laudos de capacitação próprios (III).
A controvérsia, assim, se estabelece quanto à declaração de necessidade, trazida no caput do artigo 4º, especificamente quanto à possibilidade de a autoridade policial a analisar, não sob o ponto de vista formal, isto é, de ter sido efetivamente apresentada, mas em relação ao seu conteúdo, para aferir se a declaração é suficiente a demonstrar a efetiva necessidade invocada pelo requerente.
Os despachos de indeferimento lastreados na análise de mérito da declaração invocam como fundamento as disposições do Decreto nº 5.123/04, que, regulamentando a Lei nº 10.826/03, autorizariam o procedimento em seu artigo 12, § 1º:
Art. 12. Para adquirir arma de fogo de uso permitido o interessado deverá:
I - declarar efetiva necessidade;
[...]
§ 1°  A declaração de que trata o inciso I do caput deverá explicitar os fatos e circunstâncias justificadoras do pedido, que serão examinados pela Polícia Federal segundo as orientações a serem expedidas pelo Ministério da Justiça.
[original sem destaques]
No mesmo sentido, firma-se a Instrução Normativa nº 23/2005 – DG/DPF/MJ, editada pelo o Ministério da Justiça, através do Departamento de Polícia Federal, para exigir, não só a declaração, mas a comprovação da efetiva necessidade da arma de fogo:
Art. 6º. Para o requerimento e expedição da Autorização para Aquisição de Arma de Fogo de uso Permitido por Pessoa Física, deverão ocorrer os seguintes procedimentos:
[...]
§ 1º. A autoridade competente poderá exigir documentos que comprovem a efetiva necessidade de arma de fogo.
A exegese dos referidos dispositivos infralegais (Decreto 5123/04 e IN 23/05) deixa patente que a exigência trazida na Lei, de “declaração” de necessidade, foi regulamentada de modo restritivo, passando a corresponder, não mais a uma mera manifestação unilateral do requerente, mas à efetiva comprovação do quanto declarado.
Sucede que, ao assim disporem, os referidos dispositivos regulamentares culminam por malferir, flagrantemente, o Princípio da Legalidade, ao qual está submetida a Administração Pública, por força do quanto estatuem os artigos 5°, II, e 37 da Constituição Federal:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;
[...]
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
[originais sem destaques]
Isso porque a própria Lei nº 10.826/03 traz distinção expressa entre a “declaração de efetiva necessidade” e sua “demonstração”, somente exigindo a segunda para procedimento específico, consubstanciado, não na aquisição de arma de fogo, mas na autorização para seu porte.
O entendimento deflui claramente do quanto dispõe o artigo 10 da aludida lei, no qual, ao contrário do disposto no artigo 4º (declaração), foi firmada a efetiva exigência de que o requerente demonstre a necessidade declarada:
Art. 10. A autorização para o porte de arma de fogo de uso permitido, em todo o território nacional, é de competência da Polícia Federal e somente será concedida após autorização do Sinarm.
§ 1º A autorização prevista neste artigo poderá ser concedida com eficácia temporária e territorial limitada, nos termos de atos regulamentares, e dependerá de o requerente:
I – demonstrar a sua efetiva necessidade por exercício de atividade profissional de risco ou de ameaça à sua integridade física;
[destaques acrescidos]
A sistemática legal, portanto, é clara ao estabelecer distinção entre os requisitos para a aquisição de arma de fogo e o seu porte, tendo o legislador, por óbvias razões, recrudescido as exigências para o segundo. Enquanto a aquisição é vinculada legalmente à declaração de necessidade (art. 4º), ou seja, mero termo formal firmado sob a responsabilidade do requerente, o porte exige a efetiva demonstração dessa necessidade (art. 10).
Desse modo, jamais poderiam os dispositivos regulamentares infralegais equiparar os dois institutos, para que se passe a exigir requisitos apenas aplicáveis à autorização para o porte de arma também à sua aquisição.
A vedação é corolário do regramento basilar de que, sob o prisma do Princípio da Legalidade, não cabe ao intérprete, ainda que regulamentador, estabelecer restrições adicionais àquilo a que a lei não fez - ubi lex non distinguit, nec nos distinguere debemus.
Sobre o tema, assim leciona, com a habitual precisão, CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO:
O Texto Constitucional brasileiro, em seu art. 5º, II, expressamente estatui que: ‘Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei’.
Note-se que o preceptivo não diz ‘decreto’, ‘regulamento’, ‘portaria’, ‘resolução’ ou quejandos. Exige lei para que o Poder Público possa impor obrigações aos administrados. É que a Constituição brasileira, seguindo tradição já antiga, firmada por suas antecedentes republicanas, não quis tolerar que o Executivo, valendo-se de regulamento, pudesse, por si mesmo, interferir com a liberdade ou a propriedade das pessoas.
(...)
Em suma: consagra-se, em nosso Direito Constitucional, a aplicação plena, cabal, do chamado ‘princípio da legalidade’, tomado em sua verdadeira e completa extensão. Em consequência, pode-se, com Pontes de Miranda, afirmar: ‘Onde se estabelecem, alteram ou extinguem direitos, não há regulamentos – há abuso de poder regulamentar, invasão de competência legislativa. O regulamento não é mais do que auxiliar das leis, auxiliar que sói pretender, não raro, o lugar delas, mas sem que possa, com tal desenvoltura, justificar-se e lograr que o elevem à categoria de lei’. (in Curso de Direito Administrativo, 26ª ed. rev. e amp., p. 341)
Outra não é a linha intelectiva do Superior Tribunal de Justiça sobre a matéria:
“ADMINISTRATIVO. OPÇÃO PELA CARREIRA DO SEGURO SOCIAL CRIADA POR FORÇA DA LEI N.º 10.855/04. APRESENTAÇÃO DO PEDIDO FORA DO PRAZO INICIALMENTE PREVISTO. REGRA QUE CONCEDE CONTAGEM DE PRAZO EXCEPCIONAL AOS SERVIDORES QUE SE ENCONTRAVAM AFASTADOS NOS TERMOS DOS ARTS. 81 E 102 DA LEI N.º 8.112/90.INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA. IMPOSSIBILIDADE. ADMINISTRAÇÃO. ADSTRITA AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. 1. O art. 3.º, § 10, da Lei n.º 10.855/04 não possui comando no sentido de que a exceção trazida em seu bojo dirigir-se-ia apenas aos servidores que, na data de edição da Medida Provisória n.º 146/03, já estivessem afastados pelos motivos discriminados nos arts. 81 e 102 da Lei n.º 8.112/90. 2. Em atendimento ao princípio hermenêutico de que "não cabe ao intérprete limitar o alcance o comando normativo de lei, se essa não traz qualquer restrição expressa nesse sentido", a referida norma deve abranger todos os servidores que se encontravam afastados do serviço ativo pelas razões nela previstas e, por via de consequência, restaram impedidos de apresentar o "termo de opção irretratável", no final do prazo previsto no § 2.º  do art. 2.º da Lei n.º 10.855/04 - com a redação dada pelo art. 2.º da Lei n.º 10.994/04. 3. A Administração, por ser submissa ao princípio da legalidade, não pode levar a termo interpretação extensiva ou restritiva de direitos, quando a lei assim não o dispuser de forma expressa. 4. Recurso especial conhecido e desprovido.” (REsp 1091561/PR, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 06/03/2012, DJe 19/03/2012)
“RECURSO ESPECIAL. ADMINISTRATIVO. CONSELHO REGIONAL DE ENFERMAGEM. COMPETÊNCIA DE FISCALIZAÇÃO. ENFERMEIROS MILITARES. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA DAS REGRAS DE EXCEÇÃO. RECURSO DESPROVIDO. 1. A controvérsia inserta nos autos cinge-se à análise da possibilidade de o Conselho Regional de Enfermagem do Rio Grande do Sul fiscalizar os profissionais de enfermagem que atuam na Policlínica Militar de Porto Alegre. (...) 7. Se as Leis 5.905/73 e 7.498/86 não fizeram restrições, é vedado ao intérprete fazê-las, sob pena de violar o princípio da separação dos poderes. Aliás, é princípio basilar da hermenêutica que não pode o intérprete restringir onde a lei não restringe ou excepcionar onde a lei não excepciona. 8. A respeito do tema, Carlos Maximiliano, ao discorrer sobre o brocardo jurídico "ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus: onde a lei não distingue, não pode o intérprete distinguir", afirmou que, "quando o texto dispõe de modo amplo, sem limitações evidentes, é dever do intérprete aplicá-lo a todos os casos particulares que se possam enquadrar na hipótese geral prevista explicitamente; não tente distinguir entre as circunstâncias da questão e as outras; cumpra a norma tal qual é, sem acrescentar condições novas, nem dispensar nenhuma das expressas" (in "Hermenêutica e Aplicação do Direito", 17ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 247). 9. Ademais, relativamente à Lei 6.681/79, a qual estabeleceu ressalva à fiscalização dos médicos, cirurgiões-dentistas e farmacêuticos militares pelas Forças Armadas, saliente-se que, em se tratando de regra de exceção, torna-se inviável a utilização de exegese ampliativa ou analógica. É inadequada a interpretação extensiva e a aplicação da analogia em relação a dispositivos infraconstitucionais que regulam situações excepcionais, porquanto enseja privilégio não previsto em lei. 10. "As disposições excepcionais são estabelecidas por motivos ou considerações particulares, contra outras normas jurídicas, ou contra o Direito comum; por isso não se estendem além dos casos e tempos que designam expressamente" (MAXIMILIANO, Carlos. ob. cit., pp. 225/227).11. Na hipótese dos autos, há previsão legal que autoriza a fiscalização pelos Conselhos Regionais de Enfermagem das atividades exercidas pelos enfermeiros em geral. Por outro lado, não há lei que excepcione essa aplicação aos enfermeiros militares. Assim, entender-se que a restrição de que trata a Lei 6.681/79 aplica-se, analogicamente, aos profissionais militares de enfermagem é violar a própria Constituição Federal e, consectariamente, o princípio da estrita legalidade. 12. Por fim, ressalte-se que a Administração Pública, direta ou indireta, somente pode atuar dentro dos limites da lei, de maneira que a ausência de previsão legal há de ser interpretada como ausência de liberação para o exercício de poder jurídico. Desse modo, "em atendimento ao princípio da legalidade estrita, o administrador público, na sua atuação, está limitado aos balizamentos contidos na lei, sendo descabido imprimir interpretação extensiva ou restritivamente à norma, quando esta assim não permitir" (AgRg no REsp 809.259/RJ, Rel. Min. Laurita Vaz, DJe de 13.10.2008). 13. Recurso especial desprovido”. (REsp 853.086/RS, Rel. Ministra DENISE ARRUDA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 25/11/2008, DJe 12/02/2009)
[destaques adicionados] 
Portanto, se a lei, em sentido formal, estabelece nítida distinção entre os requisitos para a aquisição de arma de fogo e o seu porte, a norma infralegal que os equipara caracteriza-se, inegavelmente, como violadora ao Princípio da Legalidade.
Consequentemente, não havendo na Lei nº 10.826/03 nenhuma previsão para que o interessado demonstre a efetiva necessidade de uma arma de fogo, mas que apenas a declare, tem-se viciado de ilegalidade o ato da autoridade policial que nega a autorização de compra daquela por falta da referida comprovação. Nos efetivos termos legais, a expedição da autorização de compra é ato vinculado, para o qual são exigidos requisitos objetivos, sistemática cuja inobservância deve ser reparada através de submissão do fato concreto ao Poder Judiciário.
Bacharel em Direito, Assessor Jurídico no Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, Pesquisador em Segurança Pública e Diretor Executivo da ONG Movimento Viva Brasil. Advogado (1998-2002). Analista Judiciário (TJBA, 2002). Assessor Jurídico Autárquico (IPRAJ, 2002-2004). Procurador Autárquico (IPRAJ, 2004-2005). Assessor de Desembargador (TJBA, 2005-2007 e 2008-2012). Diretor Geral do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia (2007-2008).

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