Impossibilidade de juízo de discricionariedade da autoridade policial federal
*Fabricio
Rebelo
Via Blog da Renata |
Multiplicam-se pelo Brasil casos de indeferimento de
autorização de compra de arma de fogo por cidadãos civis. À exceção de uma ou
outra eventual insuficiência documental, a quase totalidade dos casos tem a
mesma justificativa: não ter a autoridade policial que representa o SINARM se
convencido da necessidade da arma, de forma a excepcionar a diretriz de governo
firmada no desarmamento. O despacho de indeferimento, não raro, é padronizado
neste sentido, independentemente da situação concreta do
requerente.
Ocorre
que, na análise de pedidos de autorização para a aquisição de arma de fogo, não
há, sob a estrita ótica legal, qualquer espaço para o exercício de juízo de
discricionariedade pela autoridade policial. À luz da Lei nº 10.826/03,
popularmente conhecida como “estatuto do desarmamento”, a autorização de compra
é ato vinculado, exigindo apenas a satisfação de requisitos
objetivos.
A
matéria tem regulamentação específica no artigo 4° da referida Lei, de cujos
termos se infere:
Art.
4º Para adquirir arma de fogo de uso permitido o interessado deverá, além de
declarar a efetiva necessidade, atender aos seguintes
requisitos:
I -
comprovação de idoneidade, com a apresentação de certidões negativas de
antecedentes criminais fornecidas pela Justiça Federal, Estadual, Militar e
Eleitoral e de não estar respondendo a inquérito policial ou a processo
criminal, que poderão ser fornecidas por meios eletrônicos;
II –
apresentação de documento comprobatório de ocupação lícita e de residência
certa;
III –
comprovação de capacidade técnica e de aptidão psicológica para o manuseio de
arma de fogo, atestadas na forma disposta no regulamento desta
Lei.
§ 1° O
Sinarm expedirá autorização de compra de arma de fogo após atendidos os
requisitos anteriormente estabelecidos, em nome do requerente e para a arma
indicada, sendo intransferível esta
autorização.
De
acordo com o texto legal, não desafia maiores digressões a objetividade dos
requisitos listados nos incisos I a III, porquanto se mostrem,
inquestionavelmente, de comprovação documental, seja por certidões negativas
(I), contracheque, declaração de imposto de renda ou equivalente (II), ou
através de laudos de capacitação próprios (III).
A
controvérsia, assim, se estabelece quanto à declaração de necessidade, trazida
no caput do artigo 4º, especificamente
quanto à possibilidade de a autoridade policial a analisar, não sob o ponto de
vista formal, isto é, de ter sido efetivamente apresentada, mas em relação ao
seu conteúdo, para aferir se a declaração é suficiente a demonstrar a efetiva
necessidade invocada pelo requerente.
Os
despachos de indeferimento lastreados na análise de mérito da declaração invocam
como fundamento as disposições do Decreto nº 5.123/04, que, regulamentando a Lei
nº 10.826/03, autorizariam o procedimento em seu artigo 12, § 1º:
Art.
12. Para adquirir arma de fogo de uso permitido o interessado
deverá:
I - declarar
efetiva necessidade;
[...]
§ 1°
A declaração de que trata o inciso I do caput deverá
explicitar os fatos e circunstâncias justificadoras do pedido, que
serão examinados pela Polícia Federal segundo as orientações a serem expedidas
pelo Ministério da Justiça.
[original
sem destaques]
No
mesmo sentido, firma-se a Instrução Normativa nº 23/2005 – DG/DPF/MJ, editada
pelo o Ministério da Justiça, através do Departamento de Polícia Federal, para
exigir, não só a declaração, mas a comprovação da efetiva necessidade da arma de
fogo:
Art.
6º. Para o requerimento e expedição da Autorização para Aquisição de Arma de
Fogo de uso Permitido por Pessoa Física, deverão ocorrer os seguintes
procedimentos:
[...]
§ 1º.
A autoridade competente poderá exigir documentos que comprovem a efetiva
necessidade de arma de fogo.
A
exegese dos referidos dispositivos infralegais (Decreto 5123/04 e IN
23/05) deixa patente que a exigência trazida na Lei, de “declaração” de
necessidade, foi regulamentada de modo restritivo, passando a corresponder, não
mais a uma mera manifestação unilateral do requerente, mas à efetiva comprovação
do quanto declarado.
Sucede
que, ao assim disporem, os referidos dispositivos regulamentares culminam por
malferir, flagrantemente, o Princípio da Legalidade, ao qual está submetida a
Administração Pública, por força do quanto estatuem os artigos 5°, II, e 37 da
Constituição Federal:
Art.
5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
(...)
II -
ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão
em virtude de lei;
[...]
Art.
37. A
administração pública direta
e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e
dos Municípios obedecerá
aos princípios de legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao
seguinte:
[originais
sem destaques]
Isso
porque a própria Lei nº 10.826/03 traz distinção expressa entre a “declaração de efetiva
necessidade” e sua “demonstração”, somente
exigindo a segunda para procedimento específico, consubstanciado, não na
aquisição de arma de fogo, mas na autorização para seu
porte.
O
entendimento deflui claramente do quanto dispõe o artigo 10 da aludida lei, no
qual, ao contrário do disposto no artigo 4º (declaração), foi firmada a efetiva
exigência de que o requerente demonstre a necessidade declarada:
Art.
10. A autorização para o
porte de arma de fogo de uso
permitido, em todo o território nacional, é de competência da Polícia Federal e
somente será concedida após autorização do Sinarm.
§
1º A autorização prevista neste artigo poderá ser concedida com eficácia
temporária e territorial limitada, nos termos de atos
regulamentares, e
dependerá de o requerente:
I
– demonstrar a sua
efetiva necessidade por exercício de atividade profissional de risco ou de
ameaça à sua integridade física;
[destaques
acrescidos]
A
sistemática legal, portanto, é clara ao estabelecer distinção entre os
requisitos para a aquisição de arma de fogo e o seu porte, tendo o legislador,
por óbvias razões, recrudescido as exigências para o segundo. Enquanto a
aquisição é vinculada legalmente à declaração de necessidade (art. 4º), ou seja,
mero termo formal firmado sob a responsabilidade do requerente, o porte exige a
efetiva demonstração dessa necessidade (art. 10).
Desse
modo, jamais poderiam os dispositivos regulamentares infralegais equiparar os
dois institutos, para que se passe a exigir requisitos apenas aplicáveis à
autorização para o porte de arma também à sua aquisição.
A
vedação é corolário do regramento basilar de que, sob o prisma do Princípio da
Legalidade, não cabe ao intérprete, ainda que regulamentador, estabelecer
restrições adicionais àquilo a que a lei não fez - ubi lex non distinguit, nec nos
distinguere debemus.
Sobre
o tema, assim leciona, com a habitual precisão, CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE
MELLO:
O
Texto Constitucional brasileiro, em seu art. 5º, II, expressamente estatui que:
‘Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude
de lei’.
Note-se
que o preceptivo não diz ‘decreto’, ‘regulamento’, ‘portaria’, ‘resolução’ ou
quejandos. Exige lei para
que o Poder Público possa impor obrigações aos administrados. É que a
Constituição brasileira, seguindo tradição já antiga, firmada por suas
antecedentes republicanas, não quis tolerar que o Executivo, valendo-se de
regulamento, pudesse, por si mesmo, interferir com a liberdade ou a propriedade
das pessoas.
(...)
Em
suma: consagra-se, em nosso Direito Constitucional, a aplicação plena, cabal, do
chamado ‘princípio da legalidade’, tomado em sua verdadeira e completa extensão.
Em consequência, pode-se, com Pontes de Miranda, afirmar: ‘Onde se estabelecem,
alteram ou extinguem direitos, não há regulamentos – há abuso de poder
regulamentar, invasão de competência legislativa. O regulamento não é mais do
que auxiliar das leis, auxiliar que sói pretender, não raro, o lugar delas, mas
sem que possa, com tal desenvoltura, justificar-se e lograr que o elevem à
categoria de lei’. (in
Curso de Direito Administrativo, 26ª ed. rev. e amp., p.
341)
Outra
não é a linha intelectiva do Superior Tribunal de Justiça sobre a
matéria:
“ADMINISTRATIVO.
OPÇÃO PELA CARREIRA DO SEGURO SOCIAL CRIADA POR FORÇA DA LEI N.º 10.855/04.
APRESENTAÇÃO DO PEDIDO FORA DO PRAZO INICIALMENTE PREVISTO. REGRA QUE CONCEDE
CONTAGEM DE PRAZO EXCEPCIONAL AOS SERVIDORES QUE SE ENCONTRAVAM AFASTADOS NOS
TERMOS DOS ARTS. 81 E 102 DA LEI N.º 8.112/90.INTERPRETAÇÃO
RESTRITIVA. IMPOSSIBILIDADE. ADMINISTRAÇÃO. ADSTRITA AO PRINCÍPIO DA
LEGALIDADE. 1. O
art. 3.º, § 10, da Lei n.º 10.855/04 não possui comando no sentido de que a
exceção trazida em seu bojo dirigir-se-ia apenas aos servidores que, na data de
edição da Medida Provisória n.º 146/03, já estivessem afastados pelos motivos
discriminados nos arts. 81 e 102 da Lei n.º 8.112/90. 2. Em
atendimento ao princípio hermenêutico de que "não cabe ao intérprete limitar o
alcance o comando normativo de lei, se essa não traz qualquer restrição expressa
nesse sentido", a
referida norma deve abranger todos os servidores que se encontravam afastados do
serviço ativo pelas razões nela previstas e, por via de consequência, restaram
impedidos de apresentar o "termo de opção irretratável", no final do prazo
previsto no § 2.º do art. 2.º da Lei n.º 10.855/04 - com a redação dada
pelo art. 2.º da Lei n.º 10.994/04. 3. A
Administração, por ser submissa ao princípio da legalidade, não pode levar a
termo interpretação extensiva ou restritiva de direitos, quando a lei assim não
o dispuser de forma expressa. 4.
Recurso especial conhecido e desprovido.” (REsp
1091561/PR, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 06/03/2012, DJe
19/03/2012)
“RECURSO
ESPECIAL. ADMINISTRATIVO. CONSELHO REGIONAL DE ENFERMAGEM. COMPETÊNCIA DE
FISCALIZAÇÃO. ENFERMEIROS MILITARES. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA DAS REGRAS DE
EXCEÇÃO. RECURSO DESPROVIDO. 1. A controvérsia inserta nos autos cinge-se à
análise da possibilidade de o Conselho Regional de Enfermagem do Rio Grande do
Sul fiscalizar os profissionais de enfermagem que atuam na Policlínica Militar
de Porto Alegre. (...) 7. Se as Leis 5.905/73 e 7.498/86 não fizeram restrições,
é vedado ao intérprete fazê-las, sob pena de violar o princípio da separação dos
poderes.
Aliás, é princípio basilar da hermenêutica que não pode o intérprete restringir
onde a lei não restringe ou excepcionar onde a lei não
excepciona. 8. A
respeito do tema, Carlos Maximiliano, ao discorrer sobre o brocardo jurídico
"ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus: onde a lei não distingue,
não pode o intérprete distinguir", afirmou que, "quando o texto dispõe de modo
amplo, sem limitações evidentes, é dever do intérprete aplicá-lo a todos os
casos particulares que se possam enquadrar na hipótese geral prevista
explicitamente; não tente distinguir entre as circunstâncias da questão e as
outras; cumpra a norma tal qual é, sem acrescentar condições novas, nem
dispensar nenhuma das expressas" (in "Hermenêutica e Aplicação do Direito", 17ª
ed., Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 247). 9.
Ademais, relativamente à Lei 6.681/79, a qual estabeleceu ressalva à
fiscalização dos médicos, cirurgiões-dentistas e farmacêuticos militares pelas
Forças Armadas, saliente-se que, em se tratando de regra de exceção, torna-se
inviável a utilização de exegese ampliativa ou analógica. É inadequada a
interpretação extensiva e a aplicação da analogia em relação a dispositivos
infraconstitucionais que regulam situações excepcionais, porquanto enseja
privilégio não previsto em lei. 10.
"As disposições excepcionais são estabelecidas por motivos ou considerações
particulares, contra outras normas jurídicas, ou contra o Direito comum; por
isso não se estendem além dos casos e tempos que designam expressamente"
(MAXIMILIANO, Carlos. ob. cit., pp. 225/227).11. Na
hipótese dos autos, há previsão legal que autoriza a fiscalização pelos
Conselhos Regionais de Enfermagem das atividades exercidas pelos enfermeiros em
geral. Por outro lado, não há lei que excepcione essa aplicação aos enfermeiros
militares. Assim, entender-se que a restrição de que trata a Lei 6.681/79
aplica-se, analogicamente, aos profissionais militares de enfermagem é violar a
própria Constituição Federal e, consectariamente, o princípio da estrita
legalidade. 12.
Por fim, ressalte-se que a Administração Pública, direta ou indireta, somente
pode atuar dentro dos limites da lei, de maneira que a ausência de previsão
legal há de ser interpretada como ausência de liberação para o exercício de
poder jurídico. Desse modo, "em atendimento ao princípio da legalidade estrita,
o administrador público, na sua atuação, está limitado aos balizamentos contidos
na lei, sendo descabido imprimir interpretação extensiva ou restritivamente à
norma, quando esta assim não permitir" (AgRg no REsp 809.259/RJ, Rel. Min.
Laurita Vaz, DJe de 13.10.2008). 13.
Recurso especial desprovido”. (REsp
853.086/RS, Rel. Ministra DENISE ARRUDA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 25/11/2008,
DJe 12/02/2009)
[destaques
adicionados]
Portanto,
se a lei, em sentido formal, estabelece nítida distinção entre os requisitos
para a aquisição de arma de fogo e o seu porte, a norma infralegal que os
equipara caracteriza-se, inegavelmente, como violadora ao Princípio da
Legalidade.
Consequentemente,
não havendo na Lei nº 10.826/03 nenhuma previsão para que o interessado
demonstre a efetiva necessidade de uma arma de fogo, mas que apenas a declare,
tem-se viciado de ilegalidade o ato da autoridade policial que nega a
autorização de compra daquela por falta da referida comprovação. Nos efetivos
termos legais, a expedição da autorização de compra é ato vinculado, para o qual
são exigidos requisitos objetivos, sistemática cuja inobservância deve ser
reparada através de submissão do fato concreto ao Poder Judiciário.
Bacharel
em Direito, Assessor Jurídico no Tribunal de Justiça do Estado da Bahia,
Pesquisador em Segurança Pública e Diretor Executivo da ONG Movimento Viva
Brasil. Advogado (1998-2002). Analista Judiciário (TJBA, 2002). Assessor
Jurídico Autárquico (IPRAJ, 2002-2004). Procurador Autárquico (IPRAJ,
2004-2005). Assessor de Desembargador (TJBA, 2005-2007 e 2008-2012). Diretor
Geral do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia (2007-2008).
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