domingo, 1 de julho de 2012

Comissão da Verdade não vai descobrir muita coisa, diz Gabeira

publicado em 01/07/2012 às 05h35:
Para ele, principal contribuição será "incorporar a verdade à história oficial do País"
Filippo Cecilio, do R7 - Ilustração: google images

A Comissão da Verdade que foi instalada no último mês de maio pela presidente Dilma Rousseff não vai descobrir muita coisa. E dificilmente terá elementos para recomendar a punição de crimes cometidos por agentes do Estado durante a ditadura. A opinião é do ex-deputado federal e um dos principais resistentes ao regime da caserna, Fernando Gabeira. Para ele, a principal contribuição da comissão será incorporar a verdade à história oficial do País.
— É uma ilusão a gente pensar que a Comissão da Verdade, sozinha, vá alcançar um volume de dados muito grande. Ela vai desvendar muito de contribuições da sociedade e de contribuições investigativas da imprensa. Mas, de um modo geral, ela nunca descobre muita coisa.
Viaje pelos anos de chumbo no Brasil
Gabeira participou da luta armada contra o regime militar como membro do MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro), grupo que, em 1969, organizou o sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick.
O sequestro serviu para pressionar os militares a libertar quinze presos políticos ligados a organizações clandestinas de esquerda. A operação foi bem sucedida, e todos que integravam a lista de nomes feita pelo MR-8 foram libertos e deixaram o País, mas os envolvidos no sequestro foram presos algum tempo depois.
O próprio Gabeira foi preso em 1970, na cidade de São Paulo. Ao tentar fugir, foi atingido por um tiro em suas costas, perfurando rim, estômago e fígado. Preso, foi libertado em junho do mesmo ano, tendo sido trocado junto com outros 39 presos pelo embaixador alemão Ehrenfried von Holleben, que também havia sido sequestrado.
O episódio é narrado no seu livro O que é isso, companheiro?, de 1979. Na obra, Gabeira fala sobre sua participação na luta armada e o período do exílio. O livro venceu o Prêmio Jabuti em 1980 e foi transformado em filme pelo cineasta Bruno Barreto em 1997. Gabeira esteve exilado entre 1970 e 1979, período em que passou por Chile, Suécia e Itália. Voltou ao Brasil, em 1979, beneficiado pela Lei de Anistia.
— Eu penso que a Lei de Anistia foi redigida num momento histórico em que uma correlação de forças existia, e eu comemorei e não me insurgi contra ela naquele momento. Eu achava que, considerada a correlação de forças que havia, era algo bom para nós.


Ele não acredita em revanchismo na atuação da Comissão da Verdade, e entende que, caso haja elementos para tal, sejam apurados também crimes cometidos pelas organizações de combate à ditadura.
Entretanto, ressalta, sem nunca comparar quem pegou em armas para lutar contra um regime ilegal com quem reprimiu, prendeu e torturou para sustentar um golpe de Estado. Para Gabeira, um Estado ilegal não pode criminalizar ações contra sua existência impetrada por setores da população.
Leia a seguir a entrevista completa com Fernando Gabeira:
Antes de ser empossada, membros da comissão deram declarações diferentes. Enquanto alguns acreditam que a investigação se limitará aos agentes de Estado, outros dizem que quem participou da luta armada também deve ser investigado. Qual a análise o senhor faz sobre isso e sobre a comissão?
Originalmente, essas comissões são feitas para apurar crimes cometidos por agentes do Estado. Se, eventualmente, surgir alguma coisa de importante que não seja isso, eu acho que pode ser incorporado. Mas, principalmente, a Comissão da Verdade nunca foi apenas isso. Ela, quando surgiu na África do Sul, era uma comissão da verdade e da conciliação, da reconciliação. Então, acredito que tudo aquilo que for verdadeiro a respeito do que aconteceu, ajuda do ponto do vista do reconhecimento histórico, mas é preciso também definir o foco. E, evidentemente, o foco são os agentes do Estado, que tinham mais condições de serem violentos do que os revolucionários, já que detinham o aparato do Estado, a lei, e condições de realizar tortura. Minha posição é que o foco seja nos agentes do Estado. Mas, se surgir outra coisa, não há nenhum inconveniente em examinar, uma vez que o princípio é a busca da verdade.
O senhor acha que é possível comparar quem pegou em armas para lutar contra um regime ilegal com quem torturou para sustentar um golpe de Estado?
Não é possível equiparar. São atitudes diferentes. No meu entender, apesar de a escolha pela luta armada ser historicamente equivocada, uma coisa é a pessoa tentando resistir a uma quebra violenta da ordem legal. Outra coisa é um aparato de Estado produzir tanta violência como foi naquela época. Esse processo foi criado naquele momento pela sociedade brasileira e foram, de certa maneira, anistiados os dois lados. A Comissão da Verdade não se colocou naquela posição de punir as pessoas, mas sim estabelecer a verdade. E a partir daí ver o que fazer.
A Lei da Anistia, em tese, já garantiu essa reconciliação a que o senhor se refere. A comissão não deve ir além? E a lei, deve ser revista?
Eu penso que a Lei de Anistia foi redigida num momento histórico em que uma correlação de forças existia, e eu comemorei e não me insurgi contra ela naquele momento. Eu achava que, considerada a correlação de forças que havia, era algo bom para nós. Agora mudou a correlação de forças. Mas não acho razoável, uma vez mudada essa correlação, dizer que agora a Lei de Anistia tem que mudar só porque somos mais fortes do que quando chegamos do exílio.
Corrija-me se estiver errado, mas os membros da luta armada julgados por crimes de sangue não foram anistiados, eles apenas receberam diminuição das penas.
Não. Eles foram anistiados mesmo. Havia na época – e inclusive a anistia no surpreendeu – uma suposição de que seriam anistiados apenas aqueles que não participaram de atos armados. Mas o conceito de anistia geral, ampla e irrestrita, atingiu esses casos também, que é o meu caso.
A Lei de anistia impede a punição dos responsáveis pelos crimes cometidos na ditadura?
Ela anistia os crimes pelos dois lados. Ao afirmar isso, reconhece que houve crimes cometidos pelos militares. Mas anistia a todos os crimes cometidos naquele período. Agora, existem teses que vão ser discutidas ainda, e cada caso será um caso. Há teses de que o desaparecimento ou morte de pessoas são crimes continuados, que não poderiam ser anistiado. Existem várias teses em jogo tentando alterar esse princípio da lei. Mas, pelo que observo, não existe na sociedade brasileira uma disposição muito grande em rever essa questão. Existem movimentos isolados de pessoas que estão denunciando torturadores.
Nos últimos meses, grupos de jovens têm feito manifestações, os chamados “esculachos”, contra pessoas ligadas à ditadura. Como o senhor observa esses movimentos?
É uma tentativa de dramatizar a questão da ditadura para apontar para a necessidade de uma avaliação do que foi feito. Não tenho elementos para afirmar que tipo de movimento é esse e qual o tipo de espontaneidade envolvido nisso. Não sei o distanciamento que ele tem de partidos, se ele é somente a expressão de um partido político ou algo espontâneo de uma garotada que se juntou para fazer isso.
Com isso e com a instalação da comissão, a ditadura voltou ao centro do debate. Esse resgate do tema é interessante? Ajuda o trabalho da comissão?
Ajuda. Tanto é que houve aparições de algumas pessoas que já começaram a falar. Tivemos recentemente o lançamento do livro de um delegado contando algumas coisas que eles fizeram no período. E agora tivemos a revelação sobre aquela “casa da morte” que existia em Petrópolis. Essas revelações são fundamentais. É uma ilusão a gente pensar que a comissão da verdade, sozinha, vai alcançar um volume de dados muito grande. Ela vai desvendar muito de contribuições da sociedade e de contribuições investigativas da imprensa. Mas, de um modo geral, ela nunca descobre muita coisa.
Outros países da America Latina onde aconteceram golpes militares estão há anos enfrentando a ditadura. Alguns já julgaram e puniram os golpistas e responsáveis, os torturadores e assassinos. O Brasil vai fazer isso algum dia?
Eu tenho minhas dúvidas de que o Brasil um dia chegue a julgar e punir militares que participaram daquele momento. As críticas ao processo brasileiro, que permitiu que torturadores e pessoas envolvidas na luta armada fossem anistiados são antigas e nunca houve grande repercussão sobre isso. Parece-me que o objetivo maior disso tudo é conhecer o que houve. Uma vez esclarecido, aí começa outra discussão, sobre o que fazer com a verdade.
E o que se deve fazer?
Incorporá-la à história oficial do Brasil. Quanto à punição dos militares, quando chegarmos a esse ponto, os militares envolvidos, se já não estiverem mortos, estarão no final da vida deles. Pode ser que uma tentativa de punição deles, num contexto em que a sociedade não está envolvida profundamente no tema, traga para eles uma aura de simpatia no final da vida e eles acabem saindo como vítimas. Tendo a favorecer a ideia de estabelecer a verdade sem estabelecer punição para quem está no final da vida.
Concorda com a tese de que os militares buscam tratar a questão como um problema individual e não um tema político de interesse de toda a sociedade? Daí a ideia do revanchismo.
Não concordo. Dependendo da maneira como a comissão for conduzida, não é absolutamente revanchismo. Até porque, dependendo de como for, o estabelecimento da verdade é o que interessa a todos. Todos têm interesse em que a história do Brasil seja contada de forma transparente. O que incomoda mesmo os militares é a ameaça de punição, sobretudo aqueles que já estão no fim da vida.
Já se vão 48 anos do golpe de 1964. O que o senhor lembra daquele dia?
Aquele dia foi muito triste para mim. Não contava que o golpe fosse ser vitorioso tão rapidamente e sem nenhuma resistência. Nós éramos cinco jornalistas que morávamos num apartamento quarto e sala na rua Barata Ribeiro, em Copacabana, e ficamos surpeendidos com isso. Um dos nossos companheiros, inclusive já morto, foi ao quartel dos fuzileiros navais pegar armas. Porque havia uma promessa de que eles iriam resistir. A verdade é que nem isso aconteceu e a resistência praticamente se desfez em poucas horas. Estávamos, então, diante de outra situação histórica que ia marcar nossa vida adulta. Teríamos aí quase 30 anos de ditadura militar pela frente.
O senhor tem algum arrependimento daquele tempo?
Não, não há arrependimentos. Mas, se eu tivesse a possibilidade de reexaminar a situação, eu teria me dedicado à resistência pacífica.

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